quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O sistema tonal 2

No presente século, após a dissolução da música tonal em um processo que se inicia no fim do século XIX e segue com diversas manifestações de aproximação e repulsa ao sistema, consolidado há quatro séculos, percebemos uma necessidade ainda imperiosa da afirmação do tom como estruturador da música de nossos dias. A música popular é a maior beneficiária deste legado, através de sua apropriação do sistema de forma intuitiva.
Mas na academia as coisas não são exatamente assim. Mesmo vulneráveis à simultaneidade latente de nossa época, os compositores do século XXI ainda buscam caminhos de, ao mesmo tempo, consonância com o mundo atual, de forma instintiva e teórica, e ruptura com as manifestações criativas imediatamente anteriores, o que é natural e fundamental para a arte. Não há fim para a história, nem há fim para a história da música. John Adams e Penderecki são exemplos de “neotonalistas” – se é possível assim classificá-los, ainda que arbitrariamente - que iriam se contrapor ao movimento atonal da primeira metade do século XX.

Entretanto, se pularmos o arco histórico que vai de Wagner a John Cage e tudo o que aconteceu durante este período, não será possível compreender o que o ocorre hoje na música, visto que até o Jazz foi influenciado através de seus compositores mais curiosos como Mingus, Ornette Coleman, Cecil Taylor, Charlie Parker, Thelonius Monk, John Coltrane (e muitos outros) pela música clássica de vanguarda.

É preciso também compreender a força deste sistema tonal, que tinha como motor de arranque o trítono, e toda a sua dinâmica. Em um texto anterior eu iniciei uma brevíssima explicação sobre ele. Continuo a explicação, amparado por alguns desenhos que busquei na web que condensados no blog, podem dar uma maior clareza a esta mensagem. É um assunto muito básico e manjado para os músicos, mas pode ser interessante para quem não conhece o assunto. Não quero me alongar muito, existem muitos livros que tratam disto de maneira bastante profunda ou original. São eles:

José Miguel Wisnik. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, 285 pp. (tem disco, trilha de Hélio Ziskind)

Henry Barraud. Para Compreender as Músicas de Hoje. São Paulo, Editora Perspectiva, 1968, 162 pp. (tem disco)

Arnold Schoenberg. Harmonia. São Paulo, Unesp Editora, 1911, 580 pp. (o início do livro é basicamente o que escrevo aqui, sem os meus comentários)

A célula do sistema tonal é a tríade, o acorde “perfeito” de três sons que une a nota fundamental - a título de exemplo, dó - à sua terça que é mi (terça porque no piano é a terceira tecla após a primeira, dó) e à sua quinta que é sol (quinta porque é a quinta tecla do piano após a primeira, dó). Entre o dó e o mi temos dois tons e entre o mi e o sol temos um tom e meio (no piano é bem fácil de entender). Assim, as notas dó-mi-sol compõe o acorde de dó maior. Este acorde perfeito está em perfeita consonância. Ele é pleno e forte, e corresponde aos sons obtidos com a ressonância natural dos primeiros harmônicos (ver postagem anterior).

o acorde de dó maior

Se quisermos criar outros acordes, como uma escada, partindo de diferentes notas apenas com as notas da escala de dó maior - que nada mais é que o antigo modo jônico da idade média (do-ré-mi-fá-sol-lá-si) - as relações intervalares apenas poderão ser mantidas nos acordes de dó maior, fá maior e sol maior: o acorde de fá maior é fá-lá-dó. Entre o fá e o dó temos dois tons. Entre o lá e o dó temos um tom e meio, como no acorde de dó maior. O acorde de sol é sol-si-ré. Também entre o sol e o si temos dois tons e entre o si e o ré um tom e meio. Estes são os acordes que formam o tripé do sistema tonal. A partir deles o sistema já pode começar a caminhar. São encabeçados pelas notas que chamamos de tônica (dó), dominante (sol) e subdominante (fá).
Continuando a subir os degraus da escada, se iniciarmos em ré e seguirmos as mesmas relações entre as notas, teremos ré-fá sustenido-lá. Mas é preciso abaixar o fá sustenido, que não pertence à escala de dó maior. Temos assim, ré-do-lá. Para ré, fá representa uma terça menor, ou seja, um tom e meio. Vamos utilizá-lo no grupo, assim, alterado. Mas ele terá que ter outro nome. O acorde perfeito que usa uma terça menor é chamado de acorde menor. O mesmo acontecerá com o acorde de mi, cujo acorde maior será mi-sol sustenido-si e também o acorde de lá, cujo acorde maior seria lá-dó sustenido-mi. Abaixam-se os sustenidos e obtemos os acordes de mi menor e lá menor, respectivamente mi-sol-si e lá-dó-mi.

o acorde de ré menor

Já temos então neste tom de dó maior os acordes dó maior, ré menor, mi menor, fá maior, sol maior e lá menor. São os acordes maiores e menores perfeitos. A questão mais complicada está em si, o último degrau da escada. O acorde de si maior é si-ré sustenido-fá sustenido. O acorde de si menor é si-ré (terça menor)-fá sustenido. Ainda temos que abaixar este último fá sustenido que está fora da escala, pois com o acorde de si menor não dá. Abaixa-se o fá sustenido e temos si-ré-fá, que é chamado de si diminuto, pois possui uma terça menor e uma quinta também abaixada.

o acorde de si diminuto

todos os acordes do tom de dó maior

Estão todos dentro da escala, mas este último acorde possui um trítono: si e fá. Toque-as no piano ao mesmo tempo e veja o resultado. Transforma-se então este último acorde em um acorde de sol maior com uma nota a mais, a sétima. Se sol maior é composto por sol-si-ré, a sétima seria o fá. Este é o acorde de sétima da dominante (sol), que contém o trítono. Sua importância reside nas atrações de resolução que ele cria. Ele possui a dominante (sol) do acorde principal (dó maior) e mais duas notas “sensíveis”. Sensíveis porque possuem meio tom de distância de duas notas do acorde de dó maior, o si (que atrai dó) e o fá (que atrai mi). Esse potencial de atração é dado pelo “quase”. É a mesma coisa que observarmos um quadro torto na parede e sentirmos necessidade de desentortá-lo. Com este meio tom, há naturalmente um pedido de alinhamento, de afinação. Ele está muito perto do acorde principal do tom. Ele pede uma resolução, que é o que chamamos de cadência autêntica, resolvida com o acorde maior principal da tonalidade, o dó maior.

cadência de sol com sétima sobre dó

Ao mesmo tempo, ele também atrai também um acorde de outra tonalidade: lá maior, formado por lá-dó sustenido (atraído por ré)-mi (atraído por fá), o que gera uma cadência mais brusca que a anterior.

Vale aí uma consideração importante: toda a explicação acima levou em consideração a nota dó como ponto de partida. Se transpusermos esta matemática para o tom de lá maior (são as notas lá-si-dó sustenido-ré-mi-fá sustenido-sol sustenido), subindo os degraus da escada (ou os graus da escala) teremos os acordes que compõe a escala de lá maior: são os acordes de lá maior, si menor, dó sustenido menor, ré maior, mi maior, fá sustenido menor e sol sustenido diminuto. O acorde de sétima da dominante desta escala corresponde ao acorde de mi maior com sétima, resolvendo-se em lá maior. Mesmo que cada tonalidade possua o seu grupo de acordes, a dinâmica de uma pode atrair acordes de outras tonalidades diferentes, gerando uma modulação, que é a passagem de uma tonalidade a outra, seja qual for a regra empregada, seja através do acorde de sétima da dominante ou de outro recurso harmônico.

Desta forma, no período clássico, uma obra nominalmente escrita em um tom central pode conter diversas tonalidades dentro dela, desde que fosse mantida uma preponderante, a que dava o título à música e que iniciava e finalizava a peça. Nos flancos, as duas tonalidades vizinhas, distantes em uma quinta da principal, nos dois sentidos. Estas duas possuem a maior quantidade de notas iguais à tonalidade principal – sol tem o fá sustenido e fá tem o si bemol. Mas algumas peças percorriam quase todos os tons, trabalhando com diferentes modulações. Com dó temos o sol (dominante) para cima e o fá (subdominante) para baixo. Por sua vez, se o fá se torna tônica, tem sua dominante em dó (para baixo) e sua subdominante em si bemol, que por sua vez, transformado em tônica, tem fá como dominante e mi bemol com subdominante.
Além da intensa dinâmica obtida através da instabilidade dupla que o trítono cria ao pedir uma resolução, a organização das tríades constituídas pelos harmônicos naturais (o que dá origem à tonalidade) permite que a música adquira um caráter modulante. É quando a tônica está permanentemente sujeita a se transformar em uma dominante e vice-versa. E esse poder modulante permite, através do ciclo de quintas em que o sistema está inserido, a sua movimentação por todos os doze tons da escala cromática.

Vale um parêntesis (ainda que um parêntesis seja muito pouco, e ainda que essa breve postagem não esteja explanando sobre os caminhos percorridos pela música até a consolidação do sistema e outras mil questões fundamentais para a sua compreensão) sobre esta estrutura. Toda escala maior tem sua relativa menor. A tônica da relativa menor está uma terça menor abaixo da tônica da escala maior. Uma terça menor abaixo do dó está o lá; portanto, a relativa de dó maior é lá menor. Assim, a relativa de ré maior é si menor, a relativa de mi maior é dó sustenido menor, etc.

Esta é a dinâmica da musica tonal, estruturada sob tensão e repouso permanente, somada à migração permanente pelas diversas tonalidades, onde as mesmas notas podem adquirir funções estruturais diferentes a cada mudança.

Essa dinâmica é tudo na música tonal, que, na minha humilde opinião, alcançou a sua plenitude em Haydn e Mozart. Aproveito para postar no blog um exemplo paradigmático desta não tão resumida explicação. Ouvir é importante para entender, e escolhi a sonata K. 330 de Mozart tocada por Horowitz, que considerava Mozart seu "number one" e o tocava com muita inspiração. Mozart sai de dó maior para sol maior (dominante) com uma delicadeza maravilhosa. É impressionante como as sonatas de Mozart são um alívio para os momentos de aflição e desengano. É a melhor forma de lembrar de amar a vida através da música.

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