domingo, 12 de julho de 2009

O sistema tonal 1


Para os dias 16, 17 e 18 de julho a Sala Cecília Meireles organizou o ciclo vienense, com a execução de obras de compositores que residiam em Viena em dois períodos diferentes e igualmente importantes. Obras de Brahms, Schubert e Beethoven serão apresentadas intercaladamente a obras de Schoenberg, Berg e Webern. Os primeiros são representantes do auge do sistema tonal, enquanto os últimos promoveram sua ruptura e criaram uma nova linguagem, o dodecafonismo.

O objetivo do ciclo é contrapor as duas linguagens e ao mesmo tempo ressaltar alguma possível continuidade. Mas para entender o que significa essa ruptura, é preciso compreender o que é essa música tonal cuja preponderância perdurou por quase quatro séculos.

A escala que a música ocidental moderna utiliza tem origem no engendramento da série harmônica, que nada mais é que um fenômeno acústico da natureza. Uma corda vibrando em certa frequência ressoa também outras frequências que são seus múltiplos. Dividindo esta mesma corda no meio, ou em 3 partes, ou em 4 partes, e etc., obtem-se também esta série de freqüências, que chamamos de série harmônica. Os harmônicos seguem a seguinte ordem, a partir de uma nota inicial arbitrada (começamos por dó):

dó (uma oitava acima) – sol – dó (duas oitavas acima) – mi – sol (uma oitava acima do primeiro sol) – etc.


Em outras culturas, as diversas escalas e suas subdivisões também foram originadas pela observação deste fenômeno, diferenciando-se no desenvolvimento, seguindo cada povo a sua cosmogonia, a sua tecnologia e outros traços de cada sociedade. Em muitas civilizações diferentes, na áfrica, América ou Ásia, quase totalmente isoladas por terra ou por mar, certa escala primeira, a escala pentatônica, originada a partir do encadeamento das quintas (o segundo harmônico) está presente. Se, por exemplo, tomarmos fá como nota inicial, o segundo harmônico será dó. A quinta de dó é sol. A quinta de sol é ré e de ré é lá. Assim, temos fá, dó, sol, ré e lá. Sequenciando o resultado temos:

fá – sol – lá – dó – ré.

Percorrendo esta escala no piano podemos recordar certo sotaque oriental, de música chinesa, e, dependendo do timbre, ritmo, instrumentos, etc., ele pode nos remeter à música da áfrica subsaariana ou até mesmo ao Blues. E a escala permite um encadeamento livre, a partir de qualquer nota, em uma circularidade fácil e natural.

A escala diatônica, célula básica da música ocidental, também surge a partir desta associação de quintas, chegando ao nosso familiar dó-ré-mi-fá-sol-lá-si. Como a relação intervalar da escala é desigual, a partir do estabelecimento de qual nota é a nota inicial (tônica) pode-se obter sequências com coloridos diferentes, os modos, que eram usados conforme se intencionava conferir um aspecto sonoro particular para cada peça. É a chamada música modal. Durante a Idade Média os modos utilizados foram estes:

Intervalos

1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom: Jônio

1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom: Dórico

½ tom - 1 tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom -1 tom: Frígio

1 tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom: Lídio

1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom: Mixolídio

1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom: Eólio

½ tom - 1 tom - 1 tom - ½ tom - 1 tom - 1 tom - 1 tom: Lócrio

Exemplos

dó - ré - mi - fá - sol - lá - si: Jônio

ré - mi - fá - sol - lá - si - dó: Dórico

mi - fá - sol - lá - si - dó - ré: Frígio

fá - sol - lá - si - dó - ré - mi: Lídio

sol - lá - si - dó - ré - mi - fá: Mixolídio

lá - si - dó - ré - mi - fá - sol: Eólio

si - dó - ré - mi - fá - sol - lá: Lócrio

Mas as duas notas adicionais da escala diatônica nos trazem novos problemas, que a escala pentatônica não possui. Primeiramente, ela cria dois intervalos de meio tom, mi/fá e si/dó. Experimente tocar estas notas ao mesmo tempo e ouça a dissonância. Segundo: ela estabelece a existência do trítono, que é o intervalo de três tons inteiros, como o de fá e si. Há uma dissonância mais forte que entre mi/fá e si/dó. Este intervalo foi chamado durante a Idade Média de "diabolus in musica". Enquanto as notas da escala pentatônica podem se relacionar e trabalhar em conjunto sem maiores problemas entre si, pois não possuem o trítono nas suas relações intervalares, na escala diatônica temos dissonâncias que tornam complexa esta relação, demandando maior cuidado e regras mais rígidas nos encadeamentos melódicos e na harmonia.

Enquanto os músicos antigos que utilizam a escala diatônica, desde os gregos, passando pelo papa Gregório e até a Baixa Idade Média, produzem suas composições através do uso dos modos escalares evitando o trítono, não existe conflito. A partir do século XV, com a multiplicação das obras polifônicas, estas relações verticais começam a demandar o estabelecimento de pactos que vão culminar na criação da linguagem tonal. E embora os monges católicos tenham evitado o trítono com o diabo foge da cruz (ou melhor, ao contrário), ele é na verdade o motor de todo o desenvolvimento do sistema tonal e da música ocidental a partir do século XV.

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