domingo, 28 de junho de 2009

Interpretação


“o compositor corre um risco inegável a cada vez que sua música
é tocada, já que, a cada vez, uma competente apresentação de
sua obra depende de fatores imprevisíveis e imponderáveis”
Igor Stravinsky em Poética musical (em 6 lições)


O assunto "música contemporânea" é até mais amplo do que parece ser. Devemos comentar não só as composições de nossa época, mas também aquilo que muitas vezes esquecemos quando tratamos dos assuntos da musicologia: a interpretação.

O modelo mais atual de interpretação musical aceito pelos mais fundamentalistas para a música barroca por exemplo prega a sua execução somente com instrumentos originais e, mais ainda, segundo os tratados da época de como os instrumentistas deveriam interpretar as peças, a afinação correta dos instrumentos, a dinâmica e outros índices de controle. E quando falamos em afinação correta, devemos lembrar que até nisto somos diferentes dos musicistas do passado. A forma como os instrumentos eram afinados não seguiam as regras atuais. A distância entre um dó e um ré não era a mesma que um sol e um lá como é hoje em dia. Havia um temperamento" de afinação que diferenciava uma peça em Dó maior e outra em Ré maior. O "temperamento" atual segue os princípios formatados por Bach (O Cravo Bem Temperado) e Rameau no século XVIII, em que as distâncias entre as 12 notas da escala passaram a ser rigorosamente iguais, e permitiram um diferente desenvolvimento da música por todos os séculos seguintes. Assim se pode compreender melhor a ênfase dada à tonalidade no título de uma obra, como em um concerto para violino em Ré maior e outro em Mi maior do período barroco. Por um motivo que não nos cabe explicar agora, essa ênfase perdurou mesmo após "O cravo bem temperado", mas fazia mais sentido quando esse temperamento fornecia um aspecto sonoro diferente para cada tom utilizado. Também a forma de interpretar uma peça, seja ela barroca, clássica ou romântica, não obstante sua partitura, mudou muito através dos tempos, como não poderia deixar de ser. Alguns musicólogos mais ortodoxos torcem o nariz para as interpretações românticas de obras de Scarlatti ou Monteverdi, com os nossos instrumentos modernos, "pegadas" expressivas, tempo livre e etc. Como a partitura de uma peça antiga, ou até mesmo de qualquer obra moderna não oferece todas as informações fundamentais para a sua execução, a forma de interpretá-la está aberta ao gosto da época, do músico ou maestro ou de uma outra série de variáveis das quais dispomos no momento da apresentação. Assim, não existe nada mais contemporâneo na interpretação da música antiga que os conjuntos atuais de música barroca, que aprofundaram nas últimas décadas o estudo dos antigos tratados de música, pois permitem uma execução mais precisa das peças do século XVI, XVII e XVIII.

Não tão contemporâneo mas igualmente moderno é o conceito de interpretação de Glenn Gould. Pianista famoso que foi muito cultuado na década 60, sua proposta era quase contrária à que citei acima. Independentemente de seu gestual particular na execução das obras de Johann Sebastian Bach ao piano, Gould dava maior importância ao conteúdo intrínseco da obra do autor, e buscava na clareza da interpretação de cada nota a mais pura transmissão da partitura, com uma precisão minimalista e quase matemática. O tempo correto entre as notas e sua acentuação clara e pontuada desconstrói a obra e a reconstrói de forma singular, revelando a sua estrutura. Alguns diziam que aquilo que ele tocava não era Bach e outros diziam que era o mais verdadeiro Bach. Pessoalmente prefiro a segunda afirmação.

O fato de ter deixado de se apresentar em público para se dedicar às gravações em estúdio em 1964 (Os Beatles fariam o mesmo em 1966) mostra o método de Gould, que pregava que as apresentações em concertos deveriam ser abolidas por qualquer músico sério. Longe das tosses e pigarros das salas de concerto, continuou sua busca pela perfeição nas interpretações e gravações de Schoenberg, Webern, Beethoven, Brahms e primordialmente Bach. Dedicou-se muito a essas gravações, aos seus documentários em radio e televisão e à escrita pelo resto de seus últimos 27 anos de vida.

Através da interpretação de Gould, as obras de Webern (compositor dodecafônico alemão) se aproximam das composições de Bach, onde quase podemos tocar as notas com as mãos.

domingo, 21 de junho de 2009

Sacrifício

Quem assistiu ao filme "Sangue Negro" (There Will Be Blood) talvez se recorde da cena em que o protagonista está realizando a sua primeira prospecção de petróleo em um poço no meio do deserto, apenas com baldes, cordas e outros instrumentos bastante rudimentares. A trilha que se passa nesta cena é chamada "Convergence" e foi composta através da utilização de diversos instrumentos percussivos, de madeira e de pele. A música se inicia com um tambor simulando uma batida de coração e evolui com a entrada gradual de outros instrumentos defasados, que apenas no final convergem para uma única e compacta marcação.

Como em um rito sacrificial, os tambores em defasagem seguem em direção a uma só pulsação. Isolados e enfraquecidos, caminham para a realização de um sacrifício sagrado final, necessário para prospectar a primeira gota de sangue da terra-mãe. No filme, este sangue negro alimenta o desejo pela busca de mais sacrifícios por todo o seu enredo, e o bode expiatório exigido pelos deuses do deserto é o melhor amigo do protagonista, que morre dentro do poço.


Embora este seja um bom exemplo de como a música contemporânea erudita está massivamente presente no cinema atual, o compositor de "Convergence" não é o autor típico. Arranjador da BBC que diz sofrer grande influência do compositor polonês Krzysztof Penderecki, Jonny Greenwood é também guitarrista da banda Radiohead.

Entretanto, há muito tempo que os compositores têm buscado o retorno ao ruído e à evidência do ritmo. Esta busca vem redimir a repulsa que o sistema tonal teve pelo ruído e pela percussão que não seja afinada, por toda a história da música ocidental desde o cantochão e seu canto sem pulso, que inaugurou a nossa tradição clássica até o período romântico.

A música primitiva e modal, marcada, pulsante e rítmica, deu lugar no ocidente à música das alturas, à melodia e harmonia como base primordial. Mas esta música modal e "primitiva" tinha no ritmo e na pulsação e, consequentemente no ruído, o alimento para o desenvolvimento das alturas em outras dimensões de escuta. No modernismo, o recalque deste ritmo gerou a Sagração da Primavera, de Stravinsky, um balé profano de 1913 que é considerado o marco da incorporação de uma maior importância do ritmo na música moderna. Nesta obra, particularmente na "Dança do Sacrifício", o ritmo conduz a peça, deixando a harmonia em segundo plano. Depois, é o ruído que entra definitivamente na nossa tradição musical com o futurismo de Edgar Varèse e seu entusiasmo pela ciência e pelos avanços científicos com a obra Hyperprism, que usa sirenes, metais, e vários instrumentos percussivos.

Mas este retorno ao ritmo vai ter nas obras de Steve Reich, compositor norte-americano de NY, uma importância muito mais primordial. A peça Drumming, realizada somente com instrumentos de percussão, realiza o reinado do tempo, a melodia do ritmo e a harmonia do ruído. Nos vídeos abaixo Drumming é executada apenas com tambores. Estes estão afinados, porém, como em um concerto de Bach não é o ritmo que prepondera, em Drumming não são as notas dos tambores que imperam. São as diversas texturas criadas pelas fases e defasagens entre as batidas que chamam nossa atenção. Ali os instrumentos melódicos e harmônicos é que são sacrificados para que possamos, como em um ritual sagrado de uma nova dimensão musical, prospectar outra esfera sonora.


segunda parte

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Ligeti - Artikulation





Este vídeo delicioso é a transcrição de uma obra de Ligeti para uma partitura, realizada por Rainer Wehinger na década de 70. Muito interessante.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Música difícil

Sempre que converso com amigos sobre música contemporânea, fala-se muito em "crise" da música. Palavras como "impasse", "beco sem saída", "crise criativa" e até "fim" são bastante comuns, e a opinião mas freqüente é que se chegou em um momento em esta música composta hoje em dia ficou mais difícil de se ouvir, distante do ouvinte comum, que tem dificuldade em acompanhar seus acordes dissonantes e seus encadeamentos sonoros imprevisíveis - alerto que quando digo música contemporânea, estou falando da música chamada "erudita" dos séculos XX e XXI, realizada após a quebra da tradição clássica, impressionista e regionalista dos períodos anteriores, porém, ainda sim acadêmica em sua forma e estilo, em oposição à música popular, transmitida de forma oral e intuitiva.

Sem dúvida, em um primeiro momento, pode parecer uma música mais "difícil", pois não admite uma escuta descompromissada e desatenta. É preciso ouvir com curiosidade e interesse, e é nisto que estas obras se afastariam de nossa contemporaneidade, pois em um mundo complexo e quase sempre inóspito, a música tem hoje em dia a função pacificadora das mentes urbanas. É através da música que o homem contemporâneo busca refúgio para suas aflições, estresses e neuroses. Afinal, diria o pensamento comum, depois de atravessar um insuportável engarrafamento na volta para casa, quem vai querer ouvir uma obra composta com uma imprevista irrupção de um coro de buzinas e motores de motocicletas, como na macroópera "Licht" de Karlheinz Stockhausen? Ou até mesmo um quarteto realizado por 4 músicos isolados entre si em helicópteros ao redor de um estádio (Helikopter Quartett, do mesmo autor)?

Não obstante o desconhecimento e o consequente desinteresse comum das massas (e até da burguesia menos informada) pela música clássica em geral, é a música contemporânea que não encontra muito lugar para ser ouvida, pois até os espectadores habituais de salas de concerto torcem o nariz para ela.

Entretanto, há de tudo para todos os momentos e sabores dentro desta categoria. São dezenas de tendências que compõe a música contemporânea, e há um descolamento do que se produziu no século XX do que se está produzindo desde a década de 60 do século passado até hoje, de teor mais clássico e tonal.

Mesmo assim, é interessante tratar da música contemporânea como um todo, pois independentemente da variedade e impossibilidade de colocar tudo que se fez e se faz agora - do século XX para os nossos dias - em uma mesma classificação, este grupo tem em comum o fato de que não conquistou ainda um lugar melhor nas prateleiras de casa ou nas memórias de nossos tocadores.

A música contemporânea é muito ampla e é um rico material para se discutir. E mais importante, conhecer. Assim, eu trocaria as palavras "crise" e "impasse" por "multiplicidade" e "desconhecimento".
Mas esse "desconhecimento" é relativo. Quem se houve nas trilhas sonoras dos filmes mais fundamentais de nosso tempo? Philip Glass ("Koyaanisqatsi" de Godfrey Reggio, "Mishima: A Life in Four Chapters" de Paul Schrader, "The Truman Show" de Peter Weir, "The Hours" de Stephen Daldry e em mais incontáveis obras), Krzysztof Penderecki ("The Shinning" de Stanley Kubrick, "The Exorcist" de William Friedkin), György Ligeti ("2001: A Space Odyssey", também Kubrick), Arvo Pärt ("Les Amants du Pont-Neuf" de Léos Carax, "Heaven" de Tom Tykwer) estão presentes.

Até John Williams, autor das trilhas de "Star Wars" e "Super Man" e quase toda a filmografia de George Lucas e Steven Spielberg, é um bom exemplo de como a música contemporânea está muito presente. Este compositor também tem incontáveis obras que não foram realizadas para o cinema. Muito boas por sinal. Embora sejam obras mais "difíceis", são indissociáveis de seus outros trabalhos mais comerciais. E refletem a multiplicidade da arte contemporânea.