domingo, 21 de junho de 2009

Sacrifício

Quem assistiu ao filme "Sangue Negro" (There Will Be Blood) talvez se recorde da cena em que o protagonista está realizando a sua primeira prospecção de petróleo em um poço no meio do deserto, apenas com baldes, cordas e outros instrumentos bastante rudimentares. A trilha que se passa nesta cena é chamada "Convergence" e foi composta através da utilização de diversos instrumentos percussivos, de madeira e de pele. A música se inicia com um tambor simulando uma batida de coração e evolui com a entrada gradual de outros instrumentos defasados, que apenas no final convergem para uma única e compacta marcação.

Como em um rito sacrificial, os tambores em defasagem seguem em direção a uma só pulsação. Isolados e enfraquecidos, caminham para a realização de um sacrifício sagrado final, necessário para prospectar a primeira gota de sangue da terra-mãe. No filme, este sangue negro alimenta o desejo pela busca de mais sacrifícios por todo o seu enredo, e o bode expiatório exigido pelos deuses do deserto é o melhor amigo do protagonista, que morre dentro do poço.


Embora este seja um bom exemplo de como a música contemporânea erudita está massivamente presente no cinema atual, o compositor de "Convergence" não é o autor típico. Arranjador da BBC que diz sofrer grande influência do compositor polonês Krzysztof Penderecki, Jonny Greenwood é também guitarrista da banda Radiohead.

Entretanto, há muito tempo que os compositores têm buscado o retorno ao ruído e à evidência do ritmo. Esta busca vem redimir a repulsa que o sistema tonal teve pelo ruído e pela percussão que não seja afinada, por toda a história da música ocidental desde o cantochão e seu canto sem pulso, que inaugurou a nossa tradição clássica até o período romântico.

A música primitiva e modal, marcada, pulsante e rítmica, deu lugar no ocidente à música das alturas, à melodia e harmonia como base primordial. Mas esta música modal e "primitiva" tinha no ritmo e na pulsação e, consequentemente no ruído, o alimento para o desenvolvimento das alturas em outras dimensões de escuta. No modernismo, o recalque deste ritmo gerou a Sagração da Primavera, de Stravinsky, um balé profano de 1913 que é considerado o marco da incorporação de uma maior importância do ritmo na música moderna. Nesta obra, particularmente na "Dança do Sacrifício", o ritmo conduz a peça, deixando a harmonia em segundo plano. Depois, é o ruído que entra definitivamente na nossa tradição musical com o futurismo de Edgar Varèse e seu entusiasmo pela ciência e pelos avanços científicos com a obra Hyperprism, que usa sirenes, metais, e vários instrumentos percussivos.

Mas este retorno ao ritmo vai ter nas obras de Steve Reich, compositor norte-americano de NY, uma importância muito mais primordial. A peça Drumming, realizada somente com instrumentos de percussão, realiza o reinado do tempo, a melodia do ritmo e a harmonia do ruído. Nos vídeos abaixo Drumming é executada apenas com tambores. Estes estão afinados, porém, como em um concerto de Bach não é o ritmo que prepondera, em Drumming não são as notas dos tambores que imperam. São as diversas texturas criadas pelas fases e defasagens entre as batidas que chamam nossa atenção. Ali os instrumentos melódicos e harmônicos é que são sacrificados para que possamos, como em um ritual sagrado de uma nova dimensão musical, prospectar outra esfera sonora.


segunda parte

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