sexta-feira, 3 de julho de 2009

Charles Ives e a liberdade

Determinar marcos históricos é um dos esportes prediletos dos historiadores. O que é bastante natural, tendo em vista as complexidades e contradições dos fatos e a calma que sentimos com a simplificação das coisas.
Algumas obras marcam bem a passagem do romantismo para o modernismo, como “L'après-midi d'un faune” de Debussy e “Le Sacre du Printemps” de Stravinsky, mas todos sabem e entendem que as coisas acontecem muito mais gradualmente. Mesmo Beethoven e Mozart já haviam composto os seus quartetos dissonantes (Grosse Fugue e Quarteto K.465 respectivamente), prenunciando o que estava por vir um século depois. Seria ainda preciso passar por Brahms e Schubert e todo o romantismo, pelo cromatismo de Wagner e pela música de Mahler para chegarmos até Schoenberg.




Fora de Viena, no final do século XIX, em outro continente e sem que pudesse ter ouvido uma peça de Webern ou Stravinsky ou ter escutado com maior frequência qualquer música posterior a Schubert, Charles Ives já fazia a sua revolução particular em Nova York. Natural de New England e formado pela Universidade de Yale onde estudou composição, era filho de Georges Ives, que foi diretor de banda musical durante a guerra de Secessão. Seu pai, segundo dizia, transmitiu à ele que não existem regras na música, que está aberta às mais livres experimentações, com todos os sons disponíveis no mundo. Haviam algumas histórias interessantes sobre o pai: fez uma vez duas bandas marcharem uma contra a outra para ouvi-las em simultânea cacofonia. Ives também se recordava que ele e os irmãos foram instruídos a cantar a canção rural "Old Folks At Home" em mi bemol, enquanto o pai fazia o acompanhamento em dó.


Mas Ives precisaria ainda se formar, se mudar para Nova York e começar a trabalhar na Mutual Life Insurance Company, enquanto era também diretor musical na Central Presbyterian Church para, depois de um promissor início como compositor, desaparecer no cenário musical. Ninguém sabia muito a razão de ter feito isso, mas especulava-se que Ives possuía certo bloqueio em relação à cultura da música clássica americana. Parecia-lhe uma "arte emasculada", controlada por senhoras de caridade e estrangeiros efeminados. Ives acreditava que a música americana fora desvirtuada pelos seus compositores para agradar ao público, e era preciso compor com mais audácia, utilizando ritmos complexos, texturas complicadas e acordes dissonantes. Em um concerto onde seu amigo compositor Carl Ruggles era sistematicamente vaiado, Ives gritou: "Seus maricas, quando ouvirem uma música forte e máscula como esta, levantem-se e usem seus ouvidos como homens!"
Na verdade, suas concepções musicais eram mais profundas que isso. Ives era filho da terra de onde se originou o transcendentalismo. Acreditava no homem comum e na força de sua intuição como forma de progredir na arte e na vida. Sua música foi composta à noite e nos finais de semana, quando não estava dirigindo sua companhia de seguros. Mas foi criada com liberdade, longe da ofuscação dos teatros e das duras críticas da classe musical novaiorquina. Enquanto Schoenberg precisou conceber uma nova teoria musical, com regras e justificativas, seja em oposição ou continuidade à forte tradição tonal européia e vienense, Ives criou seu método de composição sem dar explicações a ninguém, utilizando a justaposição de diferentes texturas sonoras, de tonalidades e ritmos diferentes, de forma a completar um todo às vezes dissonante, outras vezes dotado de sonoridade popular e tipicamente americana. Era a mesma liberdade que deu origem ao jazz, à Duke Ellington e à harmonia experimental dos anos seguintes.

Uma boa oportunidade para conferir ao vivo a obra de Charles Ives é neste domingo às 17:00h, na Sala Cecília Meireles, quando o Emerson String Quartet tocará seu Quarteto nº 1.

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